Os 12 vetos feitos pelo presidente Jair Bolsonaro ao Marco Legal do Saneamento, aprovado em 24 de junho e sancionado no último dia 15, criou um impasse no Congresso Nacional. O novo conjunto de normas e regras que tratam da regulação do setor vai permitir, entre outras novidades, uma maior participação da iniciativa privada para alcançar a universalização dos serviços de água e esgoto.
E foi justamente esse o ponto da discórdia. Um dos artigos vetados, o 16, permitia que as companhias públicas prorrogassem os atuais contratos em 30 anos antes que a transição fosse feita, o que no entendimento do Governo Federal atrasaria os objetivos de mudança do novo marco.
Em nota enviada à imprensa, a Secretaria Geral da Presidência informou que, hoje, “35 milhões de pessoas não têm acesso à água tratada e 104 milhões não contam com serviços de coleta de esgoto no Brasil”. A expectativa do governo é que a entrada das iniciativas privadas possa injetar no setor mais de R$ 700 bilhões nos próximos 14 anos, algo que o dinheiro público não seria capaz de alcançar.
Nos moldes atuais, os municípios firmam acordos diretamente com empresas estaduais e municipais de água e esgoto, sob o chamado contrato de programa, que contém regras de prestação e tarifação, mas permite que as estatais assumam os serviços sem concorrência. O Novo Marco Regulatório extingue esse modelo, transformando-o em contrato de concessão, com a concorrência de empresas privadas em condições de igualdade com estatais.
Um dos trechos vetados permitia a renovação desses contratos de programa sem qualquer licitação pela vigência de três décadas. O problema do veto é que a iniciativa, prevista no artigo 16, foi fruto de acordo entre o Congresso e os governadores.
Segundo o deputado Enrico Misasi, coordenador da Frente Parlamentar Mista em Defesa do Saneamento Básico, dentre os vetos feitos o de maior relevância e impacto político é o do artigo 16. Os demais não serão problemáticos, como o artigo 20, onde o próprio setor de resíduos sólidos fez a solicitação. Enrico entende que o veto ao artigo 16 deixaria o projeto ainda melhor, mas ressalta que ele não deve ser mantido porque a questão foi prioritária na discussão que possibilitou a aprovação do Novo Marco Legal do Saneamento. A presença do artigo, aliás, possibilitou o apoio ou pelo menos a retirada da resistência por parte de governadores com diferentes ideias sobre o assunto.
“O artigo 16 foi o ponto central na negociação que permitiu a aprovação ampla do Marco Legal. Por isso, a manutenção dele [o veto] é bastante difícil na Câmara e no Senado na minha avaliação hoje.”
Marcus Vinicius Macedo Pessanha, advogado especialista em Direito Administrativo, Regulação e Infraestrutura, explica que toda essa “costura” feita entre parlamentares e governadores, e que rendeu no artigo 16, é legítima dentro do sistema democrático, mas que não pode se sobrepor à importância do Novo Marco Legal, que tem o objetivo de universalizar os serviços de saneamento básico país.
“O que não pode acontecer é que essa negociação ignore o interesse público e atenda só a interesses corporativos seja lá de quem for”, destaca.
Pessanha explica que o Novo Marco Legal veio para que haja, efetivamente, a universalização dos serviços de saneamento básico, algo que apenas será possível com uma maior participação da iniciativa privada. Assim, postergar a situação atual por mais três décadas em nada ajudaria o setor.
“Se você tem uma norma que diz que os contratos atuais das companhias estaduais podem ser prorrogados por até 30 anos, você está fazendo algo para inglês ver, criando uma lei que não vai ter efetividade”, destaca.
Transição mais tranquila
Segundo Marcus Vinícius Fernandes, presidente da Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe), não há como delegar imediatamente aos privados uma organização que levaria tempo, como atender, por exemplo, municípios muito pequenos. Ele explica que uma boa transição permitiria um melhor conjunto de parcerias público privadas e uma organização dos blocos, dentre outras questões que já foram colocadas e que precisam de tempo para serem concluídas.
“São questões que não são lineares. Não é apenas uma defesa corporativista, é uma defesa do processo de universalização. Quando queremos resolver um problema, a gente soma e não subtrai. Esse veto subtrai, ele não ajuda o processo”, ressalta Marcus.
Outros vetos
Muitos municípios pequenos não recebem hoje serviços de saneamento e podem ser contemplados com uma mudança promovida pelo Novo Marco Regulatório, que prevê a inclusão dessas regiões em blocos que farão parte da licitação. Um dos pontos vetados pelo presidente, Jair Bolsonaro, obrigava a União a apoiar com dinheiro e assistência técnica a organização e a formação desses blocos municipais. O Ministério da Economia alegou que a referida obrigação não foi acompanhada do cálculo de impacto financeiro e orçamentário.
Todo o artigo 20 foi vetado. Ele excluía o setor de resíduos sólidos de algumas regras aplicadas aos serviços de água e esgoto. Segundo o Executivo, o texto acabava com a isonomia entre as áreas, impactando negativamente na competição saudável entre os interessados na prestação desses serviços.
Outro ponto vetado diz respeito à subdelegação de serviços. O projeto permitia à empresa vencedora da licitação subdelegar mais de 25% do valor do contrato para outras empresas, sem prévia autorização municipal. Para o governo, isso “desprestigia as regras de escolha do poder concedente estabelecida na legislação e permite, ainda, onerar a prestação do serviço com custos não estimados em princípio.”
Os vetos serão avaliados pelo Congresso Nacional, que pode mantê-los ou derrubá-los. Para isso, a questão deve ser decidida em sessão conjunta, por maioria absoluta das duas Casas, ou seja, dois terços.
De acordo com o deputado Enrico Misasi, o presidente do Congresso, Davi Alcolumbre, já convocou os parlamentares para apreciarem a questão, mas em todas as oportunidades a análise de veto foi cancelada. Ele explica que os deputados ligados ao saneamento estão reivindicando que isso seja pautado o quanto antes. “Por uma questão de segurança jurídica do setor, para que possamos, de uma vez por todas, definir os contornos detalhados do Novo Marco Legal do Saneamento”, pontua.