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Wilson* voltou a trabalhar há poucos dias num canteiro de obras na zona oeste de São Paulo após ter vivenciado na pele o drama da Covid-19. “Teve uma semana que eu senti uma falta de ar da zorra. Na hora de deitar, antes de dormir, era muita falta de ar. Depois, eu comecei a sentir muito cansaço. Quando ia subir escada, me sentia muito cansado. Aí passou. Outro dia eu tava trabalhando e senti uma moleza nas pernas, não aguentei trabalhar à tarde e, quando cheguei em casa, fiquei com febre”, conta o pedreiro, que pediu para não ser identificado. Ele sentiu os sintomas em meados de abril, mas só testou positivo para o coronavírus na obra em que trabalha no dia 5 de maio. Antes de saber que estava infectado, porém, reparou que sua esposa apresentava uma tosse seca persistente e insistiu para ela ir ao médico, mas ela relutava. Assim que soube que estava com Covid, foi mais enfático e levou-a ao hospital. A esposa de Wilson também recebeu o diagnóstico positivo e foi internada no mesmo dia. “Mas aí ela ficou só oito dias. Foi no dia 8 [de maio], quando foi do dia 13 para o dia 14 ela não resistiu. A falta de ar tava muita e ela já tinha problema de respiração, quando andava no sol ficava cansada. Aí ela faleceu”, relata. “Estou sem chão”, diz ele, que morava sozinho com a esposa, a quem chamou de “minha grande companheira”. Resigna-se de ter dado à esposa uma despedida digna. “Quando eu vi na televisão aquelas imagens dos enterros no cemitério da Vila Formosa, eu pensei: ‘Não quero isso pra ela’. Falei com o antigo patrão dela e ele me ajudou a fazer o enterro”, relata.

Declarada como atividade essencial em um decreto do presidente Jair Bolsonaro há cerca de um mês e outro do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), desde março, a construção civil vem acumulando histórias semelhantes às de Wilson. Em um levantamento com afiliados, o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Civil de São Paulo (Sintracon-SP) afirma que 44 empregados do setor e outros 13 parentes deles já morreram em decorrência da Covid-19 só na região metropolitana de São Paulo. O levantamento é de meados de maio. A situação pode ser mais grave, já que novos afastamentos de trabalhadores infectados continuam a ocorrer no estado.

Esse é o caso de João*, afastado de suas funções como serralheiro de um canteiro de obras de um futuro condomínio no bairro de Moema, na zona sul de São Paulo. “Eu tô com 12 dias afastado da obra. Lá tem muitas pessoas ficando doente. Ontem mesmo [dia 2 de junho] eu fiquei sabendo que foram retirados uns dez trabalhadores [com suspeita de Covid] lá dessa obra. Tem vários amigos meus afastados, soubemos de dois trabalhadores que foram hospitalizados”, relata. Ele diz que foi retirado do trabalho por uma técnica de segurança que recomendou que ele fizesse um exame particular. Pagou do próprio bolso um exame no valor de R$ 350 no Hospital da Santa Casa de São Paulo e recebeu o diagnóstico positivo. “Chegou um total na obra de 40 pessoas afastadas e eles não fecham a obra. Tá todo mundo contaminando um ao outro lá dentro”, afirma.

Companheiro de trabalho na mesma obra de João, o carpinteiro Robson* tinha sido afastado havia um dia quando conversou com a reportagem da Agência Pública, no último dia 2 de junho, após ter testado positivo para a Covid-19. A empresa da qual é contratado disponibilizou um teste rápido que deu positivo. “No dia em que eu fui afastado, saíram mais cinco carpinteiros e um ajudante junto comigo. Eles pediram para eu tomar banho e sair de imediato da obra, falaram que o vírus estava circulando muito, que cada minuto que eu passava lá eu poderia passar pra outras pessoas”, relata Robson. “Antes de eu sair, cinco já tinham sido afastados. Deles, três o teste deu positivo e dois negativos.” Apesar do susto, ele relata não estar sentindo muitos dos sintomas clássicos associados à Covid-19, apenas uma dor de cabeça que aparece de vez em quando.

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Ele reclama da falta de condições ideais de isolamento nos canteiros de obra. “A obra em que eu trabalho é muita gente, não tem como manter afastado”, avalia. “Para todo mundo no mesmo horário, o vestiário é insuficiente. Lá tem pra mais de cem pessoas. O trabalho acaba às cinco da tarde e vai todo mundo tomar banho no mesmo horário. De manhã, quando a gente chega, todo mundo toma café junto no refeitório. As pessoas se cruzam, não tem como. Obra é um negócio que você vai fazer um serviço ali, você precisa que vá uma pessoa ou um grupo te ajudar. A gente tá em risco. Tinha que ter umas regras melhores”, opina.

“Estou marcando greve geral para o dia 16 de junho”, diz presidente do Sintracon-SP

Antônio de Sousa Ramalho, presidente do Sintracon, é enfático: “Estou marcando greve geral para o dia 16 [de junho] e só vamos retornar quando todos forem testados”, disse, em entrevista à Pública. Afirmou, porém, que há margem para negociação com as empresas do setor caso estas aceitem ampliar a testagem dos trabalhadores nos canteiros de obra em São Paulo nos próximos 60 dias. “Não dá mais para empurrar com a barriga. As empresas não testam, o governo também, e as mortes vêm aumentando a cada dia. A construção civil, as empresas estão fazendo corpo mole”, afirma.

“Estou marcando greve geral para o dia 16 de junho”, diz presidente do Sintracon-SP

O sindicalista afirma que a entidade já autuou mais de 2 mil canteiros de obras em decorrência do aumento de relatos de contaminação por Covid-19, falta de testagem da doença e condições adequadas para o cumprimento das medidas de distanciamento social (disponibilização de álcool em gel, turnos de trabalho etc.). O sindicato vem pressionando as empresas para ampliar os testes no setor. Ramalho afirma que, após a pressão dos sindicatos, as empresas do ramo fizeram testes rápidos em cerca de 20 mil trabalhadores. Destes, já há resultados, segundo ele, para 17 mil trabalhadores, dos quais 28% (ou 4.760 empregados da construção civil) testaram positivo para o novo coronavírus. O que mais preocupa o sindicalista, porém, é outro dado. “Houve cerca de 40 mil afastamentos de trabalhadores [em função de apresentarem sintomas da Covid-19] que ficaram em casa e eles retornaram ao trabalho. Não foram testados e não sabem se tem ou não o vírus”, afirma Ramalho. “Nós estamos tendo muita lentidão nesses testes.”

O presidente do Serviço Social da Construção Civil do Estado de São Paulo (Seconci-SP), Haruo Ishikawa, afirmou que está preparando um estudo a respeito dos testes rápidos que começou a aplicar no dia 7 de maio deste ano. “Orientado pela preservação da saúde, o Seconci-SP aplica os testes rápidos prioritariamente em funcionários da construção civil a partir do sétimo dia em que tenham apresentado sintomas que possam denotar contaminação pelo novo coronavírus. Todos os testes são acompanhados por médicos da entidade e sempre é feita retestagem quando for necessária”, disse Ishikawa em nota enviada à reportagem. O Seconci já adquiriu 10 mil testes e aguarda a chegada de outros 4 mil.

Um resultado preliminar do estudo preparado pelo Seconci aponta que, de uma amostra de 2.934 trabalhadores submetidos a testes pela entidade, 12% (354) estão com a doença, outros 10% da amostra foram contaminados pelo vírus, mas já estão imunes. Setenta e seis por cento não contraíram a Covid-19 e 2% dos testados tiveram resultado inconclusivo. A entidade participou da elaboração do estudo “Conhecendo as Ações das Construtoras Paulistas no Combate à Covid-19”, elaborado em conjunto com o Sindicato da Construção Civil do Estado de São Paulo (SindusCon), que representa as principais empresas do setor. A pesquisa foi feita com 15 empresas entre os dias 1º e 12 de maio deste ano. Segundo Ishikawa, a pesquisa “mostra que permanecem baixos e até ligeiramente declinantes os números de afastamentos de trabalhadores com suspeita ou confirmação de Covid-19”. Somente 1% dos afastamentos no período ocorreram por suspeita de Covid-19 e 1,4% por confirmação de Covid-19, 96% dos trabalhadores mantêm atividade. “Pela pesquisa mencionada acima, as construtoras formais contribuintes do Seconci-SP e associadas ao SindusCon têm adotado e cumprido as diretrizes, inclusive com a inclusão das recomendações nos Diálogos Diários de Segurança nos canteiros de obras e o acompanhamento permanente por parte dos técnicos de segurança, dos cuidados durante as obras”, disse Ishikawa.

Procurado pela Pública, o SindusCon não quis se pronunciar. Por meio de nota, o sindicato patronal questiona os números do Sintracon. “Lamentamos profundamente os óbitos, ocorridos entre os 650 mil trabalhadores formais da construção paulista. O número 57 [mortes] decorre de uma sondagem informal. Envolve trabalhadores da construção e seus familiares, e abrange todo o período desde o início da pandemia. Não há evidências de que as perdas indicadas, assim como os contágios relatados, estejam ligados diretamente às atividades profissionais nas obras, podendo também ter se originado nas residências ou em outros locais”, disse a entidade em nota.

Separar o que é essencial na construção civil?

“A ideia de restrição seletiva das atividades dentro do setor da construção para fins de caracterização da essencialidade da atividade econômica é uma medida sanitária relevante, pois reduz o risco de transmissão da Covid-19 nos canteiros de obras voluptuárias, bem como reduz o risco de contaminação no próprio sistema de transporte público das grandes cidades”, avalia Luciano Leivas, vice-coordenador nacional da Coordenadoria de Defesa de Meio Ambiente de Trabalho (Codemat) do Ministério Público do Trabalho (MPT).

Leivas aponta para uma discussão feita por promotores trabalhistas e outros especialistas no setor: a possibilidade de separar, no interior do setor da construção civil, as obras mais vinculadas às atividades essenciais, como as voltadas para a garantia do fornecimento de água e esgoto, as viárias ou no transporte público e até mesmo as obras em hospitais e equipamentos de saúde para o combate à Covid, de outras como, por exemplo, a construção de condomínios de luxo. A ideia é rechaçada pelas empresas, que apontam o impacto econômico do fechamento das obras, um dos setores que mais empregam em todo o país. “Entendemos que a construção de condomínios residenciais é uma atividade ao ar livre, que pode ser desenvolvida com os devidos cuidados para evitar contaminação: medição de temperatura, higienização frequente das mãos e dos equipamentos de proteção individual, medidas para evitar aglomerações, uso de máscaras tanto na obra como nos trajetos de ida e volta do canteiro etc.”, disse o presidente do Seconci-SP, Haruo Ishikawa.

Outras vozes no MPT, como o procurador Tiago Cavalcanti, vão em direção oposta. “Não existe nenhum fundamento minimamente razoável para que as indústrias, o que inclui a construção civil, estejam previstas como atividades essenciais”, disse em entrevista à Repórter Brasil.

Até aqui, há 19 denúncias trabalhistas no MPT em São Paulo relacionadas à Covid-19. O governo federal tentou, por meio da Medida Provisória (MP) 927, afastar a responsabilização das empresas empregadoras pelos casos de contaminação da Covid. O artigo 29 da MP estabelece que “os casos de contaminação pelo coronavírus (Covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal”. O Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu a eficácia do artigo em julgamento ocorrido no fim de abril. A Lei de Benefícios da Previdência Social (8.213/1991) estabelece que “não é considerada como doença do trabalho a doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho”.

“A demonstração de que o empregador negligenciou medidas elementares de contingenciamento da transmissão do vírus, como fornecimento de máscaras respiratórias, ausência de protocolos de afastamento de trabalhadores contaminados, ausência de medidas de distanciamento dos postos de trabalho e até mesmo caracterização de surto de contaminação, isto é, vários trabalhadores de um mesmo canteiro de obra ou frente de trabalho contaminados durante um determinado período, tudo isso são evidências que tendem a concretizar a responsabilidade civil do empregador por danos relacionados ao adoecimento de operários no bojo da pandemia”, avalia Luciano Leivas.

Mesmo contaminados, os trabalhadores ouvidos pela Pública se colocam como favoráveis à manutenção da construção civil como atividade essencial. “Enquanto eu tava trabalhando, para mim tava normal. As coisas tão muito caras, tá muito difícil para quem tá parado”, argumenta Robson. “Nossa vida tá em risco, não tem como negar isso. Trabalhando a gente corre um risco a mais. Acho que tinha que ter umas regras melhores, mas parar tudo não é a solução, porque muita gente vai entrar em desespero. A falta de dinheiro para comprar coisas essenciais vai deixar as pessoas desesperadas”, avalia.

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