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O projeto “A Peça da Semana” apresenta nesta edição item do acervo da Biblioteca do Museu “Mariano Procópio”. Trata-se de dois volumes do famoso clássico da literatura universal, “O Engenhoso Fidalgo D. Quichote de la Mancha”, do escritor espanhol Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616).

O livro é reedição portuguesa, datada de 1876/1878, realizada no Porto, pela Imprensa da Companhia Literária. A distância temporal que separa esta edição da primeira é de cerca de 2 70 anos. Publicado em 1605, o romance de Cervantes se tornou, ao longo dos tempos, um dos mais lidos mundialmente. Algumas ilustrações do livro serão publicadas nas redes sociais do museu.

O personagem “D. Quixote”, também conhecido como “o intrépido cavaleiro da triste figura”, ao lado de seu fiel escudeiro, “Sancho Pança”, e em cima de seu cavalo “Rocinante”, tornou-se o arquétipo do homem idealista, insaciável na busca e na luta por seus sonhos. Dentre as passagens mais emblemáticas da longa narrativa, a que talvez esteja mais profundamente arraigada no imaginário popular, é aquela em que o personagem aparece lutando contra moinhos de vento, como se pode ver na litogravura digitalizada junto a essa postagem.

A presença de fartas ilustrações nessa edição da obra de Cervantes também chama atenção. Foram produzidas mais de dois séculos após o lançamento do livro. São de autoria do desenhista e gravurista francês Gustave Doré (1832-1883), internacionalmente reconhecido por seus trabalhos de ilustração de obras literárias. Na biblioteca do Museu há outros exemplares ilustrados com as gravuras deste artista. Atualmente, algumas edições de “D. Quixote”, inclusive as de bolso – apesar de utilizarem suportes e técnicas de impressão muito diferentes dos padrões adotados no século 19 – reproduzem as ilustrações de Doré, demonstrando sua importância para a história do livro e da leitura, não apenas no mundo oitocentista, mas também nos dias de hoje.

A edição apresentada também impressiona pelas suas dimensões: o volume um mede 44 cm de altura, 33 de largura e sete de espessura do corte; o dois, 43,5 de altura, 33 de largura e oito de espessura. São medidas diferentes das publicações contemporâneas. Ao longo do tempo, com o avanço tecnológico no campo editorial, os livros foram reduzindo de tamanho, atendendo às demandas de maior circulação e alcance de público mais amplo. Afinal, tamanhos mais reduzidos favorecem a portabilidade e a prática da leitura em diferentes momentos e espaços, conferindo maior conforto e despojamento.

Edições de luxo, como esta, em grandes dimensões, eram produzidas para que as obras fossem colocadas sobre mesa ou algum outro suporte, exigindo do leitor postura mais disciplinada: em pé ou sentado. Como destaca o historiador Robert Darton, durante muito tempo, sobretudo em decorrência do pouco número de pessoas alfabetizadas em várias comunidades europeias, as leituras em voz alta eram práticas muito comuns. Dessa forma, enquanto uma pessoa lia, o grupo ao seu redor também desfrutava o prazer das narrativas. Foi assim que muitas obras – inclusive “D. Quixote” – conseguiram consolidar sua popularização em diferentes países e culturas.

O romance cervantino – considerado por muitos especialistas espécie de “inaugurador” do estilo moderno, foi lido, relido, interpretado e reinterpretado inúmeras vezes por diferentes culturas – sobretudo na América Latina. No Brasil, Câmara Cascudo identificou a presença dos personagens cervantinos nas memórias populares, através da tradição oral. Segundo o estudioso, esse romance já teria aqui chegado – provavelmente no nordeste – no século 16, no período conhecido como domínio espanhol. Além disso, o autor não descarta a possibilidade de muitos imigrantes espanhóis terem trazido consigo essa forte herança cultural.

O fato é que “D. Quixote” deixou marcas na cultura brasileira, inspirando, inclusive, a publicação de duas revistas humorísticas com esse mesmo nome, em contextos diferentes do país: a primeira, no final do século 19, fundada por Ângelo Agostini (1842-1910), e a segunda, em 1917, por Bastos Tigre. Ambos os periódicos se dedicavam à defesa do humor como expressão da identidade nacional. A segunda, em particular (como afirma a historiadora Monica Pimenta Velloso), apropriou-se do “cavaleiro da triste figura” como símbolo aglutinador de intelectuais humoristas e boêmios, que tinham como um dos fortes propósitos dessacralizar a história oficial brasileira através das caricaturas e de outras linguagens humorísticas, compondo um dos segmentos do complexo e plural modernismo brasileiro, nos anos iniciais do século 20. Os desenhos feitos pelo pintor modernista brasileiro Cândido Portinari, na década de 1950, com cores variadas e toques expressionistas, também representaram a carga simbólica do arquétipo desse herói cervantino, que, há muito tempo, e de múltiplas maneiras, povoa o imaginário popular.

REFERÊNCIAS

CHARTIER, Roger. Textos, impressão, leituras. In: HUNT, Lynn. “A Nova História Cultural”. 2ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 211-238.

DARTON, Robert. “História do Livro e da Leitura”. In: BURKE, Peter (org.). “A Escrita da História”. São Paulo: Universidade Estadual Paulista (Unesp) 2005.

VELLOSO, Monica Pimenta. “Modernismo no Rio de Janeiro: Turunas e Quixotes”. Rio de Janeiro: Fundação “Getúlio Vargas” (FGV), 1996.

Foto: Vinícius Ribeiro

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